quarta-feira, setembro 21, 2011
E os cigarros no cinzeiro II
Sempre que ela vai dormir, na escuridão da sua sala de estar, pega uma taça de vinho, cruza seus braços e fica olhando à janela. Vê a rua, mais calma do que de manhã; o asfalto molhado pela chuva de mais cedo; e os postes logo abaixo. Fixa o olho em algum casal aleatório e imagina como seria andar de mãos dadas com a pessoa que você ama. Começa a chover, e mais uma vez ela imagina como seria confortável e reconfortante se apoiar nos braços de seu homem, enquanto ele segura o guarda-chuva para que nenhum dos dois se molharem.
A luz de um quarto do prédio em frente se acende. Ela estava esperando por isso. Há um homem, novo, de cabelos escuros e barba feita, vestido com uma camisa desabotoada até metade do peito e cabelos ensebados de creme. Todos os dias ela repara neste homem, e sente que ele seria a pessoa ideal para segurar um guarda-chuva vermelho, enquanto o vento frio da noite bate em seus rostos e um longo beijo é dado. O homem pega um cigarro de seu maço, acende e é como se ela pudesse sentir o cheiro. Ele começa a se despir olhando para a rua, e tentando brincar com alguma sujeira no poste de luz que fica na frente de seu quarto, longe demais para alcançar e mesmo assim ainda brincando com aquele ninho escurecido pela poeira dos caminhões que passam na avenida todos os dias.
Ela começa a sentir uma mão passando pelo seu rosto, e junto dessa mão o cheiro de cigarro. Os dedos firmes lhe apertam os seios, ela começa a se entregar. Abre os olhos novamente e vê que o homem continua naquele quarto, sentado em sua cama e fumando o seu cigarro. Vira-se e vê que seu marido, um senhor de 65 anos com o qual casou no ápice da sua juventude, está lhe apalpando. Sorri e diz que não com a cabeça, sente como se o mundo desabasse. O cheiro é o mesmo, as mãos são outras. A vontade de amá-la é a vontade que ela tem de ser amada, mas isso não é suficiente, e o senhor vai deitar e roncar por uma longa noite, que ela já sabe que não conseguirá dormir.
Agora o quarto do homem está diferente. Continua claro, mas por uma luz na tomada, uma luz branca. Será que ele tem filhos, e os filhos tem medo do escuro? Será que ele tem medo do escuro? Nunca conseguiria entender como alguém pode ter medo do escuro, pois é lá que ela se encontra. Ela sente no escuro, o poder de ser quem quiser, o poder de se camuflar e fazer o que lhe der na telha. O escuro trás mais felicidades para um ser do que o claro, do que o quarto claro. No escuro ela poderia entrar na casa dele e realizar seus sonhos, suas vontades. No escuro ela poderia ser a mulher que ele quisesse, e ele seria o homem que ela quer. Ela, que sempre adorou o escuro não consegue entender uma luz acesa no quarto.
Desliga a televisão, apaga o abajur e continua olhando, em silêncio. Assim como tem feito por muitas noites, apenas observa os movimentos do homem e espera seu marido acordar para que possa, finalmente, ir dormir. Dormir e sonhar com o homem que tanto olha as noites. De tanto olhar já sabe alguns dos costumes dele, algumas atitudes e até traços de personalidade; sabe que ele ficará furioso com o cachorro que acabara de entrar no quarto, e tinha levado um sapato para fazer de brinquedo; sabe que ele nunca olhará três andares acima no prédio à frente e um pouco à esquerda para ela. E se olhasse, não teria como vê-la pois ela está invisível na escuridão que criou para si. Se olhasse, apenas veria vestígios de uma mulher com um vinho. Apenas vestígios e depois o escuro. E então o escuro.
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