Começa o dia pedindo para que tudo dê certo, e ainda assim não sai da cama. Espera o melhor momento, o melhor tic-tac do relógio, o melhor barulho interno do travesseiro. Levanta da cama e não consegue manter o sorriso no rosto, banha-se, veste-se, sai de casa e vai para o mundo.
A rua, fora de sua zona de conforto, parece muito menos agitada do que o normal. A rua parece-lhe como um filme antigo, onde há apenas o personagem principal e o vento, soprando suas roupas. No caso, o personagem é apenas mais um coadjuvante. Poucos carros passam, e os que passam jogam água de fora das pequenas poças formadas pela chuva da noite anterior, e nas poças há um reflexo distorcido. Não o dele, nem de ninguém, mas de um céu claro, com nuvens brancas e um sol ao canto. Se olhasse para o alto, veria apenas um dia frio e cinzento.
Não cumprimenta as pessoas e sente que assim está fazendo um bem geral, impedindo de que elas tenham todas um enorme desprazer em ver a sua cara olhando para seus rostos. Sente-se como uma aberração, uma anormalidade enrustida em um corpo humano que não consegue ser igual aos outros. Não sente vontade de ser igual, e mesmo se sentisse não o seria.
Volta para casa com as compras do mercado; único lugar em que consegue dar seu bom-dia para alguém sem se sentir julgado. Nunca mais voltará lá, e se voltar não vão lembrar dele, e se lembrarem nunca será o mesmo caixa de novo. Anda alguns quarteirões para reparar que os carros não dão atenção para o morador de rua que anda no meio fio, passam correndo ao lado dele sem se preocupar ao menos com uma distância segura. "Que bom seria se minha vida fosse assim, sem eu me preocupar com a distância e proximidade. A distância é a única arma que tenho para lutar comigo mesmo, e a proximidade é a minha derrota. Me distancio de todos, ando no meio fio e vivo sem uma preocupação mais forte, para que chegue algum carro, e não se preocupe com a distância, se aproxime de mim, e eu me deixe aproximar, deixe aproximar, deixe aproximar...". Neste momento o mendigo jazia ao chão, com uma perna quebrada por um ônibus que passou no sinal vermelho.
Quando volta para casa, ao fechar o trinco do portão e colocar o guarda-chuva azul escuro aberto ao lado da mesa, sente que o molhado em seu rosto é uma gota de chuva respingada. Passa a mão para tirar a gota e continuar com a sua vida, enxugando cada vestígio que te faça lembrar que ainda está vivo. Engolindo cada sentimento torto que lhe apareça à face, e fazendo com que esse sentimento fuja correndo como o poodle da vizinha ao entrar no quintal do pitbull. Fez do erro da vida a sua proteção, e assim como uma barata ele se finge de morto para escapar da morte.
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